quinta-feira, outubro 12, 2006

olhares do campo - carta a um amigo

“A carta. Hoje entrou em descrédito ou ao menos em decadência (...) Tudo gira em velocidade e a carta é tão lenta. (...) E o tempo e trabalho que exige escrevê-la. E que esforço para decifrar nos sinais os mais legíveis. Porque ler é mobilizar em nós todas as faculdades activas. O entendimento a memória a imaginação. Uma carta. Um impensável só pensável na lentidão genesíaca do carro de bois. E na intimidade da candeia de azeite...”
Vergílio Ferreira – Escrever (130)

Amigo:

Escrevo-te da janela de onde avisto o longe, espraiado nos campos em que jaz agora o restolho. De um lugar onde, diz-se, o tempo se suspende, os ritmos se transformam e o vagar irrompe. Um lugar diferente, o campo. Mas será mesmo assim?
Às linhas irregulares dos blocos de betão, que vislumbras da tua janela, opõe-se aqui a linha aberta e infinita do horizonte. Por momentos pergunto-me se por isso se pode abrir um abismo entre os nossos modos de olhar.
Mas quantas vezes olhámos de forma diferente as coisas e quantas as olhámos como que com os mesmos olhos? De umas e de outras vezes partilhámos os nossos olhares e apenas isso basta, amigo.
Pela escrita vou de novo ao teu encontro, procuro que cruzemos os nossos olhares uma vez mais. Recomeço um caminho nunca terminado. Do campo à cidade?
Do campo à cidade vão todas as diferenças e semelhanças que quisermos encontrar, sem sabermos se nos lugares, se em nós mesmos...
Anoitece já sobre a janela de onde avisto o campo. No horizonte escuro apenas as chamas breves das queimadas em que arde o restolho. No campo ou na cidade, amigo, talvez seja sempre assim. Os sinais do fim talvez mais não sejam que prenúncio de um novo recomeço. Depois da noite haverá de amanhecer. Amanhã é um novo dia. E nós voltaremos a encontrar-nos por aí.
Um abraço, amigo!

3 comentários:

Jorge Barata disse...

Que as pedras no caminho sejam apenas obstáculos que se ultrapassam entre etapas :)

Nuno Guronsan disse...

Olha, gostei muito desta frase que aparece aqui nos comentários. Lembra-me um anónimo costumeiro que gosta de deixar frases com muito significado lá pelos meus lados...

José Raposo disse...

Pois é, os pontos de vista entre campo e cidade cruzam-se e por vezes não diferem assim tanto...

Estou a ver que isto vai ser muito interessante :)