Faço por aqui o que durante quase duas semanas ocorreu nos meios de comunicação social franceses... à semelhança dos atentados ou dos incêndios e que tantas vezes merece as mais variadas críticas tenho mantido o meu silêncio sobre este assunto.
Nesta altura parece fazer-se algum balanço dos confrontos nas ruas das vilas e cidades francesas apesar de estranhamente continuarem a arder 600 carros por noite.
Quando abri as portas a este blog nunca pensei que me viesse a sentir forçado a falar tantas vezes da França, mas aparentemente alguém por lá me tem dado tantas e tantas razões de comentário. E são tantos os responsáveis...
A França é, e muito provavelmente continuará a ser uma referência em termos de estado social independentemente do governo ser de esquerda ou de direita. É essa principal particularidade da França e a principal causa do desmoronamento actual desse mesmo estado social.
Nesta matéria como em tantas outras, nós os portugueses somos muito parecidos com os franceses na forma como empurramos com as nossas vetustas barrigas os problemas, esperando que mais cedo ou mais tarde eles acabem por se resolver. No entanto, nós somos mais comedidos na abordagem das nossas próprias capacidades, e já no caso francês os seus dirigentes sempre se arrogaram ao direito de considerar o seu modelo de estado social como "o" modelo a ser adoptado por esse mundo fora de gente selvagem e menos culta ou sofisticada que os franceses.
Ora como não podia deixar de ser, existe uma explicação politica para estes acontecimentos. O barril de polvora que à muitos anos ameaçava rebentar só encontrou condições perante a total confusão politica do estado francês criado por um sistema constitucional inventado para se adaptar ao general De Gaulle mas totalmente inadaptado aos nossos dias apesar de ter conseguido resistir ao maio de 68.
Chirac é neste momento o principal fundamentalista da Europa, nas mais variadas questões. Assim foi na questão do iraque, assim foi na questão da PAC, assim foi na reacção absurda ao referendo europeu, assim tem sido na questão do orçamento europeu para os proximos anos e assim continua a ser na relação com o José Manuel Barroso.
Chirac não tem pensado em governar o país mas sim em deixar claro que externamente o país até pode ser governado por um partido de direita mas isso não pode querer dizer que se concorda com o liberalismo economico. Antes pelo contrário, parece mesmo que Chirac, depois do referendo europeu que perdeu, passou a defender a colectivização dos meios de produção e quer mesmo que a terra seja entregue a quem a trabalha e não interessa para nada essa historia da organização do comercio internacional e outras questões que colocam a França e a Europa no centro das atenções.
O resultado essencial foi permitir a substitução de Raffarin por um primeiro ministro em que Chirac tivesse mão forte esquecendo-se que este primeiro ministro iria ver o seu mandato minado a partir do interior com um Sarkozy cada vez mais forte e ambicioso, em quem Chirac já não tem mão.
Sarkozy foi até à relativamente pouco tempo das poucas pessoas em França que parecia ter ideias mais organizadas sobre o problema economico do país assim como do problema da imigração que em França ganha uma expressão quase absurda quando existem 5 milhões de imigrantes magrebinos, 1 milhão de portugueses e mais não sei quantos milhões de outras nacionalidades.
No entanto a falta de força de Villepin e a doença subita de Chirac, aliado a um certo apagamento de Len Pen fizeram Sarkozy ter mais olhos que barriga. Julgando ter todos os trunfos que lhe permitiriam chegar facilmente ao Eliseu resolveu consolidar a sua votação apelando a um eleitorado vasto e orfão de protagonismo politico activo que anteriormente já votou frente nacional.
Hoje em dia podemos dizer muita coisa sobre o fenómeno da imigração e o que tem vindo a ser feito em matéria de integração das comunidades. Mas em França alguns fenomenos sociais impusionaram que desde a década de 60 se viesse a "acumular" pessoas em depósitos incaracteristicos julgando-se salvaguardar a essência da dignidade humana.
Ora perdoar-me-ão os meus amigos mas esses mesmos movimentos sociais são tão responsáveis como os politicos nestes confrontos.
Realmente não existe igualdade de oportunidades, não existem empregos, não existem condições de vida nas comunidades estrangeiras em França (não europeias), e o problema acaba por rebentar porque o acumular destas situações teve um impacto maior nas segundas e terceiras gerações que efectivamente não conseguiram obter ainda qualquer vantagem do estado francês, ao contrário das primeiras gerações que ainda se lembra da condições em que viviam no seus paises de origem. Estas novas gerações não têm qualquer referência de uma "pátria mãe" e naturalmente consideram-se franceses de segunda aliados a uma maior consciêncialização religiosa que serve na falta de outro tipo de referências.
Mas não se iludam os meus amigos sobre a legitimidade destes confrontos. Apesar das condições abjectas em que os portugueses viveram na decada de 60, conseguiram melhor ou pior integrar-se na sociedade francesa revelando em muito aspectos uma total capacidade de ceder à humilhação com o simples intuito de dar uma vida melhor aos seus filhos.
Os movimentos sociais de esquerda que neste momento dão cobertura à destruição nas ruas francesas sobre a capa de um determinado conceito de desigualdade social e ainda imbuidos de algum saudosismo do Maio 68, estão a prestar um mau serviço à França e à Europa.
Num estado de direito como o Francês é legitimo o direito à manifestação e à demonstração pelo voto do descontentamento. O que simplesmente não é possivel é dar cobertura politica a um movimento espontaneo que não tem "per si" um fundamento politico e a ter é contrário à existência do sistema social das democracias ocidentais. Todos os que esperam minar o liberalismo economico e a globalização com este tipo de acção directa contra o estado não pode esquecer que estas tropas vêm calçadas com sapatilhas da Nike.
Citando Pacheco Pereira, "o pior que na Europa se faz aos imigrantes é tratá-los como coitadinhos e inundá-los com subsidios provenientes do estado social que cada vez mais está financeiramente falido."
Ao longo do tempo a consciência social da Europa tem vindo a tratar os imigrantes como os seus proprios cidadãos, tentanto integrá-los com recurso a programas mais ou menos inuteis (claro a que a realidade portuguesa não conta).
Em 1994 tive direito ao meu primeiro banho de civilização em Paris e mais concretamente em Amiens. A cidade capital da Picardie é aquilo que em Portugal chamariamos uma cidade média, mais ou menos do tamanho de Coimbra.
E para um estrangeiro pouco habituado a estas andanças, a organização norte-europeia teve em mim um forte impacto e ao mesmo um gosto agridoce sobre o cosmopolitismo da zona.
Em casa de familiares imigrantes e para meu espanto rapidamente fui avisado do carácter multi-cultural da região (em 94 não se dizia estas coisas...), aparentemente nad especial se verificava na cidade onde despachei rolos de fotografias uns atrás dos outros até ao fim da avenida que liga o centro e a Tour Perret (que já aqui mostrei) aos limites da idade.
Nesta zona existe um entroncamento com outra larga avenida e atravessando-a deixamos a Amiens turistica dos "Hortillonages", a Amiens das flores pagas pela "mairie" em cada janela, a Amiens que comemora os seus mortos na primeira Guerra com bandeiras dos aliados em cada poste ou janela dos edificios publicos. Nesta Amiens que eu começava a descobrir, os prédios eram tão inexpressivos como qualquer bairro do Cacém, em que gente encaixotada olhava de lado ao estrangeiro nunca visto naquelas paragens... segundo os meus familiares aquela era a zona dos "algerians"...
Pela primeira vez eu tinha contacto com uma realidade não muito comum em Portugal antes da Expo'98 ou do Euro2004... em 1994 os imigrantes em Portugal estavam longe do nosso olhar enquanto construíam auto-estradas para sitios onde antes levávamos 8h a chegar.
Era nesta França que eu acabava de conhecer, que tinha pela primeira vez a noção clara da descriminação num país que muito admirava.